Espaço, Organização e Autonomia

Por Cursinho Livre da Lapa

Sempre foi claro o cenário de precariedade da nossa estrutura educacional. Frente a uma declarada nova onda de ataques e desmanches a esse sistema, a reafirmação do posicionamento por uma educação crítica e libertadora é uma questão fundamental à sociedade e a classe de pessoas educadoras.

Não retroceder exige organização. O medo destes iminentes ataques à Educação e à diversos outros setores da sociedade torna a resistência a eles pouco eficiente. Se agirmos de modo organizado, não há motivo para termos medo. A organização nos facilita o entendimento de nossa conjuntura e nos torna mais eficientes. No entanto, um dos primeiros desafios estruturais que essa organização nos impõe diz respeito ao território: onde?

O espaço regula as práticas. Colhe-se liberdade quando ela é semeada, e essa semente não germina em qualquer terreno. É mais que urgente a construção de um espaços em que nossas práticas libertárias sejam garantidas. Infelizmente, esses espaços têm sido cada vez mais raros. Não é à toa que o horizonte libertário vem sendo encoberto com nuvens de valores individualistas e desumanos, como propriedade, banalização da violência, competição, alienação do processo de tomada de decisões e de construção de conhecimentos, para citar o prenúncio de uma tempestade em plena formação.

Ocupar espaço, obter abrigo, prover refúgio. Essa questão prática se mostra um desafio tão dinâmico quanto prioritário, para a qual apontamentos igualmente práticos podem ser muito úteis. As experiências do Cursinho Livre da Lapa se mostram plurais nesse sentido, pela dificuldade em resolver essa questão estrutural. Embora ainda não solucionada, sua continuidade não foi capaz de minar as atividades do coletivo, e as dificuldades que impõe também resultam hoje em acúmulo de experiência.

Espaços não-institucionais oferecem condições muito favoráveis. De centros comunitários a centros culturais, tomam os mais diferentes formatos a depender da região em que se encontram. Mapear esses espaços, as atividades que promovem e seu potencial para fazer florescer novas células organizacionais tem enorme importância: fortalecer o terreno, articular frequentadoras, concretizar experiências. São exemplos Casas Libertárias, ocupações culturais, centros comunitários etc.

Pode-se propor que quanto maior a autonomia do espaço, mais suscetível a ataques diretos e indiretos, assim como é maior o potencial de fomentação à organização.

Espaços institucionais variam desde centros culturais públicos à escolas e universidades. Impõem limites claros na medida em que reproduzem diversas opressões, em diferentes níveis. Porém, são espaços de disputa, onde sua própria ocupação implica em conflito, que funciona como afirmação das pautas em luta, e como divulgação do trabalho em pauta. Quanto mais institucionalizados, mais protegidos enquanto espaço ao longo do tempo, uma vez que sua permanência tende a ser garantida. No entanto, a institucionalização faz ser mais inacessíveis as pautas de enfrentamento ao poder estabelecido.

Sentimos como foi difícil pautar questões políticas quando as aulas do Cursinho foram acolhidas por uma escola estadual. Ao longo de todos os cinco meses dessa experiência, não tivemos qualquer ameaça à nossa presença entre aquelas quatro paredes da sala que nos foi emprestada e aos materiais indispensáveis a uma aula tradicional. Por outro lado, qualquer experimentação ali recebia barreiras materiais e simbólicas – como impossibilidade de usar outros espaços da escola sem a vigilância de uma pessoa responsável pela inspeção ou até mesmo uma concorrência por estudantes da escola, que tinham que escolher entre atividades do cursinho e atividades oferecidas por empresas no mesmo horário de nossas aulas.

Por outro lado, não há dúvidas entre quem passou pela experiência de ter aulas no espaço na escola estadual e, anteriormente, no Espaço Autônomo Casa Mafalda, onde nasceu o Cursinho Livre da Lapa, que a experiência mais antiga foi a mais produtiva em termos políticos. Foi na Casa Mafalda em que estudantes puderam fazer propostas que foram muito além de resolver questões de vestibulares, como administrar o próprio tempo, organizar seu próprio sarau, debater formas de autofinanciamento do cursinho, convidar pessoas para contribuir com discussões em aulas temáticas, para citar uma pequena parte de uma lista imponente de exemplos de como o espaço abre possibilidades para o desenvolvimento da autonomia coletiva e o protagonismo sobre as próprias vidas.

Sem autonomia para propormos formas de resolver problemas das relações entre Cursinho e responsáveis pelo espaço institucionalizado cedido, perde-se o potencial de criar vínculos que fortalecem o coletivo. É o potencial de construção de identidade coletiva que cria base para uma proposta socialmente forte, capaz de promover intervenções com um legado popular e que transborde os objetivos de curto prazo de cursinhos pré-vestibulares. É pela organização micropolítica, potencializada não apenas por cursinhos livres mas também por propostas com objetivos libertários de longo prazo, que se cultiva o fermento para a organização popular protagonista de transformações sociais orientadas para a emancipação das classes oprimidas.

Há um laço que une espaço, organização e autonomia política. Manter um projeto de longo prazo, que resista às intempéries conjunturais ao mesmo tempo em que avance na libertação das correntes que nos oprimem, depende da força desse tripé. Adiar a busca por um espaço que viabilize as práticas libertárias até pode ser uma opção, mas não pode deixar de ser um objetivo de médio prazo.